segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Resenha Crítica “De onde eles vêm”, de Jeferson Tenório

Autor: Jeferson Tenório

Editora: Companhia das Letras

Ano: 2024

Páginas: 208

 “De onde eles vêm” é a mais recente obra de Jeferson Tenório, autor vencedor do prêmio Jabuti de 2021 pelo livro “O avesso da pele”; ambas as obras foram publicadas pela Editora Companhia das Letras, e ganham cada vez mais espaço no universo literário e acadêmico devido à sensibilidade elaborada e, com certeza, vivenciadas pelo próprio autor para abordar temas como o racismo e o fracasso de uma sociedade capitalista. Tenório, oriundo do Rio de Janeiro e radicado em Porto Alegre, é doutor em Teoria Literária pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e possui outras duas obras literárias publicadas “O Beijo na Parede” (2013), pela Editora Sulina e “Estrela sem Deus” (2018), pela editora Zouk.

O enredo se passa no Sul do Brasil, mais precisamente em Porto Alegre, e por meio de uma narrativa linear, mas com cenas retrocessivas, Joaquim narra suas vivências negras na cidade que no ano de 2022 segundo dados da Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância (DPCI), registrou aumento de 132% de denúncias contra o racismo em relação ao ano anterior. Adicionalmente, é interessante – e lamentável – pontuar o racismo sofrido pelo próprio autor, nesse ano de 2024, em uma abordagem policial no Parque da Redenção, em Porto Alegre, sendo esse, por sinal, o tema de sua obra premiada, anteriormente mencionada.

Já nas primeiras páginas do livro temos uma lembrança do personagem Joaquim quando com dez anos, ele e sua mãe se veem sem rumo, sem casa onde morar e buscando alternativas diante da pobreza que persistia mesmo após as oito horas diárias de serviço. E é essa sensação amarga de falta de possibilidades, que perpassa toda a narrativa, que causa incômodo, como se a vida transcorresse de maneira dispersa e as personagens estivessem ali como passageiros de um ônibus lotado de trabalhadores às cinco da manhã, fazendo girar uma máquina que não possibilita a ascensão social de pessoas negras e pobres: “Não era possível que a síntese da minha vida fosse um ônibus lotado em meio a um calor insuportável de verão” p.8

No entanto, como uma quebra dessa visão, no presente da narrativa, Joaquim lembra dessa cena com a mãe enquanto ele apresenta pela primeira vez um poema autoral na universidade de Letras para seu professor, Moacir Malta. E após ler o poema, dando o máximo de si: “Comecei a ler, pausadamente, porque queria que todos compreendessem o significado de cada palavra e seus encadeamentos” p.6, Joaquim recebe elogios dos colegas e do professor, e esse acrescenta que o poema lido era “uma luta física pela permanência do passado, como se este pudesse ser conservado nos desejos” p.6, e ainda, faz uma comparação do título com um poema de Fernando Pessoa, mas o leitor não tem acesso ao poema para também analisá-lo.

No próximo ponto, é revelado ao leitor que Joaquim entrou na universidade aos 24 anos, pelo sistema de cotas, logo, a obra possui como pano de fundo o ingresso dos primeiros cotistas nas universidades brasileiras e é nesse cenário que ocorre o despertar racial de Joaquim, que começa a perceber as profundas desigualdades e os abismos vivenciados por ele e pelos seus colegas de classe que são majoritariamente brancos. Apesar disso, o personagem mantém o desejo de ser um escritor reconhecido e espera que esse curso o ajude a devolver a escrita, bem como, suas habilidades de interpretação, porém, muitos percalços são encontrados: “tudo que posso dizer é que quase fui vencido pela burocracia” p.7.

O autor, em entrevista, já mencionou que não busca com o romance discutir o processo das cotas, e sim, como a trajetória dos personagens negras se desencadeiam nesse ambiente após a Lei de Cotas (12.711/2012), e como essa desorganizou um espaço de poder e oportunidades até então dominado pelas elites. Por esse motivo, a medida em que os fatos se desenrolam, os modos de intersecção de uma multiplicidade de temas podem ser encontrados em alguma parte do livro. Cada palavra, cada movimento e gosto do personagem, além de suas relações de amizade e amorosas nos contam sobre uma determinada situação, de um tecido social tenso, frágil, mas imprescindível para entendermos a complexidade das vivências ali dinamizadas.

De maneira mais ampla, é possível observar o desencontro intelectual de Joaquim com as leituras que são impostas pela universidade. Diversas obras e autores como Ulisses, Aristóteles, Odisseia, são recomendadas, mas parecem não fazer muito sentido ou contribuir significativamente para as reflexões de Joaquim na sua própria escrita. Desse modo, é necessário ressaltar que quando uma universidade propõe uma grade curricular eurocentrada ela propõe uma “prisão”, isto é, autores que estão dentro não saem – comumente chamados de clássicos – e autores que estão fora dificilmente entram, instaurando assim o que se nomeia como cânone: “Ulisses era um personagem muito distante do que eu entendia como literatura naquele momento” p.99

Elaborando esse conceito, trazemos a abstração que Tomaz Tadeu da Silva faz no seu livro Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo, dizendo que “é através de um processo pedagógico que permita às pessoas se tornarem conscientes do papel de controle e poder exercido pelas instituições e pelas estruturas sociais que elas podem se tornar emancipadas ou libertadas de seu poder e controle” (TADEU, 2016, p.54). Partindo dessa premissa, o que podemos presenciar a partir de muitos dos currículos universitários é essa tentativa e auferimento de controle à hegemonia branca, nessa perspectiva, fica evidente a dificuldade que Joaquim enfrenta de se identificar com as disciplinas e com as discussões que são feitas em sala de aula, mas que ele – e outros colegas negros – opõem-se e buscam caminhos para aos poucos reverter essa situação.

Outro ponto de análise, que apesar de não ser um ponto alto do livro é um elemento crucial para a mudança de percepção de Joaquim sobre si mesmo, são as religiões de matrizes africanas como potencializadoras. Assim, ao presenciar de diversas maneiras a opressão, o racismo, as desigualdades sociais, etc. o personagem entra em um limbo, como se ele tivesse perdido o encantamento de si. No entanto, por meio da religião de matriz africana ele reencontra o elo com os seus e revifica suas potencialidades pela ancestralidade, e isso o impulsiona a caminhos antes inimagináveis. É como se quanto mais você – negro – se aproximasse de coisas que te distanciam do seu eu negro, mais você estivesse fadado ao fracasso. Por esse motivo, se distanciar da universidade é uma alternativa para Joaquim em determinado momento na narrativa, mas o retorno é possível após o reencontrar-se.

Além desses pontos específicos, que envolvem a universidade e o ser negro em si, a relação de Joaquim com a avó e a tia desdobra-se por todo o livro. Avó, já bem de idade e com lapsos de memória, em muitos momentos é vista como um fardo a ser carregado pelo personagem, que cuida dela junto com a tia-avó que também já está em idade avançada, mas continua se dedicando ao serviço de doméstica em casas alheias. Mas ao final da narrativa é perceptível a mudança de visão de Joaquim sobre a avó: “Minha avó era um boabá, cujas raízes brotavam em mim. A ancestralidade era um desejo terno de envelhecer” p.185

A realidade é que “De onde eles vêm”, tece uma narrativa que evoca a máxima de Conceição Evaristo “A nossa escrevivência não é para adormecer os da casa grande e, sim, para acordá-los de seus sonos injustos”, pois evidencia o paralelo da literatura como ideal elitizado, isto é, que evoca a imagem de um leitor deitado no sofá apenas por abstração; em contraste com a ideia da literatura como dissentimento, como mencionado pelo próprio personagem “Quando você lê, viver de maneira harmônica com o mundo é impossível. A impressão que estamos em constante desacordo com a realidade” p.152. Nesse sentido, a literatura de autores negros não visa – em sua maioria – ser aconchego ou passatempo, muito pelo contrário, tem a urgência de retratar e colocar em pauta inconformidades da contemporaneidade.

Concluindo, “De onde eles vêm” focaliza o medo da elite branca de perder espaços dentro da estrutura de poder das universidades públicas do Brasil. Em análise, a Lei de Cotas vigente a mais de vinte anos, já destaca casos bem sucedidos dessa política, assim, diversas pesquisas mostram que o desempenho acadêmico de cotistas é muito similar ao de não cotistas. Com base nisso, o “para onde eles vão” se torna um eco de esperança, para que esses acadêmicos e intelectuais negros concluintes das universidades públicas ocupem outros espaços de poder e a estrutura eurocentrada se desestabilize, também, em outros âmbitos.

 

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 Texto escrito por Alyne Barbosa Lima, doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU)


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