quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Voz e memória! Na roda: Maria Firmina dos Reis


A escritora nigeriana Chimamanda Adichie, em uma das palestras mais assistidas do TED Talks, traz a atenção aos perigos da história única, e ressalta que “Histórias tem sido usadas para expropriar e tornar maligno, mas histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar”. E é com essa fala que eu gostaria de tirar da torre e jogar na roda a autora Maria Firmina dos Reis, que muito diferente do que se esperava de uma mulher escritora do século XX, - aliás, nem se esperava que fossem escritoras -essa não se prendia apenas ao romance com paixão, amor, traição, drama e muitas... muitas lágrimas, apesar de o romance Úrsula (1859) ter tudo isso,  tem também uma história bem densa sobre os escravos do século XIX, o que faz de Maria Firmina dos Reis pioneira na escrita sobre a escravidão.

Resultado de imagem para Úrsula e outras obras,Como afirma, Hoock Demarle (1991) e como sabido de nós leitores, nos idos do século XIX, a escrita pública era uma prática considerada masculina, poucas mulheres se arvoravam no mundo das letras e, quando faziam isso, na grande maioria das vezes, escreviam sobre fatos triviais, amores, poesias adocicadas, uma literatura perfumada de “bicos e bordados”. Tocar em assuntos tão sérios, como a escravidão ou a abolição, era reservado ao homem. No entanto, não foi apenas nesse quesito que a autora foi pioneira, pois, se pararmos para pensar, Maria Firmina publicou o romance Úrsula dez anos antes da publicação do famoso poema “Navio negreiro”, de Castro Alves, de 1869, em que o poeta fazia a denúncia da viagem dos cativos nos porões dos navios negreiros. Ora, isso nos atesta, mais uma vez, o pioneirismo de Maria Firmina. Assim como sua ousadia e sua coragem de falar e denunciar assunto tão delicado, visto que sabemos que o tráfico de escravos já estava proibido no Brasil, desde 1850, com a Lei Eusébio de Queirós.

Passaremos agora ao romance Úrsula. Como dito, o livro não se desprende de nenhum elemento dramático, é aquela história que nos deixa aflitos com os porvires da narrativa, até porquê, não se sabe muito bem o que vem de Úrsula ou do narrador. O que temos que ressaltar e o que é, inclusive, o que grande parte dos - ainda tímidos- artigos escritos na academia tem relatado é a questão da profundidade dos personagens negros. Na obra Firminiana eles não são vistos como meros escravos e nem mesmo como artífice da trama principal. Como bem coloca a Revista Suplemento Pernambuco (06/19) "O romance transgrediu o campo mapeado pela ficção brasileira, ultrapassando o limite das águas navegáveis pela imaginação e pelo pensamento no século XIX. Na obra, é do homem negro que brota a medida do humano, e da mulher negra que emerge um arquivo de memória cuja narração fratura o ordenamento colonial que organiza(va) a sociedade brasileira. Esse romance produziu uma significação (dentro e fora do texto) que não apenas confrontava a realidade que a literatura oitocentista produzia, mas que gerou também uma pergunta, e uma forma de perguntar, rastreada em outros romances, que alçam contornos de uma comunidade entre discurso e vida, entre narrativa e experiência histórica, a partir da qual outra interpretação do Brasil emerge, fraturando a “comunidade imaginada” alimentada em diversos romances que compõem o cânone literário nacional".

Sendo assim, É na condição de mulher e afro-brasileira que Maria Firmina propõe-se a narrar a história da jovem Úrsula e de sua mãe, além dos infortúnios de Tancredo, traído pelo seu próprio pai, bem como a tragédia dos escravos Túlio, Susana e Antero, os quais recebem, no texto, um tratamento marcado pelo ponto de vista interno, pautado por uma profunda fidelidade à história oculta da diáspora africana no Brasil.

Talvez seja isso o que nós estudantes negros - e não negros também! - devemos fazer jogar na roda essas poucas mulheres escritas e ocultadas ou embranquecidas pela sociedade, para que mulheres negras não precisem mais pedir desculpas - como fez Firmina, leia em seguida- ao escrever um livro e narrar uma história de seu povo.

"Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o riso mofador de outros, e ainda assim o dou a lume. Não é vaidade de adquirir nome que me cega, nem o amor-próprio de autor. Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem, com uma instrução misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais, e pouco lida, o seu cabedal intelectual é quase nulo.” (Maria Firmina dos Reis, Úrsula)

Com Maria Firmina dos Reis e sua obra devidamente apresentadas, passemos então à problemática da história única. Por que pouco - ou nada- se comenta sobre Maria Firmina dos Reis no meio acadêmico? Por que eu, uma estudante de Letras estou a um pé de sair da universidade e nunca se quer ouvi esse nome na minha vida? Por que ela com toda sua maestria e irreverência não é nem mencionada na academia? E se mencionada, isso é feito com tão pouco esmero que nem é lembrada. Enfim, é notório que Romances com autoria negra na literatura brasileira constituem um quadro de poucas obras, um quadro rarefeito. Segundo a Revista Suplemento Pernambuco, na sua edição de junho/19 - inclusive foi através dela que conheci a obra e a autora que aqui vos falo - de 1859 a 2006, apenas 11 romances assinados por mulheres negras foram lançados no Brasil, e de 2006 até 2019, já são 17, isso graças às rodas de leituras com a temática negra que vem crescendo entre os leitores.

Por isso a ideia de tirar da torre e jogar na roda! Porque é isso mesmo! É inaceitável em um país continental em que contém a maior população negra fora da África que apagamentos como esses sejam feitos. Por qual motivo não podemos ler no mesmo alinhamento José de Alencar  e Maria Firmina dos Reis, que embora tenha sido publicada em 1859 a obra (Úrsula) estava no prelo em 1857, o que indica que o romance
pode ter sido escrito antes ou concomitantemente a O guarani (1857), de José de Alencar. Ambas as obras partilham do mesmo contexto histórico e político, mas, entre os significados para o passado e o porvir que comunicam, existem largas diferenças. E essas diferenças estão unicamente na história romanceada que querem que vejamos, a história aos olhos do branco e, principalmente, dos homens brancos. 

"– Tu! Tu livre? ah, não me iludas! – exclamou a velha africana abrindo uns grandes olhos. Meu filho, tu és já livre?" (Maria Firmina dos Reis, Úrsula).

Que Maria Firmina dos Reis não caia mais uma vez no esquecimento, porque se tem algo que sua obra não é, é mesquinha, pois é possível perceber que Úrsula não é apenas o primeiro romance abolicionista da literatura brasileira, fato que não é admitido por grande parte dos historiadores de literatura, mas é também o primeiro romance da literatura afrobrasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente, que tematiza o assunto do negro a partir de uma perspectiva interna e comprometida politicamente em discutir a condição dos negros no Brasil daquele século e também destes tempos de hoje, já que a sua obra não se encerra numa perspectiva passadista, sem comunicações para o presente. O romance Úrsula vem inaugurar, em nossas letras, o momento em que remanescentes escravos tomam, com as suas mãos, o sonho de, através da literatura, construir um país sem opressão. Que continuemos. E joguemos na roda.

Ainda venho comentar com vocês sobre "as outras obras" desse livro Úrsula e outras obras, e Maria Firmina dos Reis da Editora Câmara. Gostaria de ressaltar que esse livro está por R$0,00 golpinhos no Kindle! Aproveitem! Literatura de primeira com preço acessível!

Alyne Lima

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