A escritora
nigeriana Chimamanda Adichie, em uma das palestras mais assistidas do
TED Talks, traz a atenção aos perigos da
história única, e ressalta que “Histórias tem sido usadas para
expropriar e tornar maligno, mas histórias podem também ser usadas para
capacitar e humanizar”. E é com essa fala que eu gostaria de tirar da torre e
jogar na roda a autora Maria Firmina dos Reis,
que muito diferente do que se esperava de uma mulher escritora do século XX, -
aliás, nem se esperava que fossem escritoras -essa não se prendia apenas ao
romance com paixão, amor, traição, drama e muitas... muitas lágrimas, apesar de
o romance Úrsula (1859) ter tudo
isso, tem também uma história bem densa
sobre os escravos do século XIX, o que faz de Maria Firmina dos Reis pioneira
na escrita sobre a escravidão.
Como afirma, Hoock
Demarle (1991) e como sabido de nós leitores, nos idos do século XIX, a escrita
pública era uma prática considerada masculina, poucas mulheres se arvoravam no
mundo das letras e, quando faziam isso, na grande maioria das vezes, escreviam
sobre fatos triviais, amores, poesias adocicadas, uma literatura perfumada de
“bicos e bordados”. Tocar em assuntos tão sérios, como a escravidão ou a
abolição, era reservado ao homem. No entanto, não foi apenas nesse quesito que
a autora foi pioneira, pois, se pararmos para pensar, Maria Firmina publicou o
romance Úrsula dez anos antes da publicação do famoso poema “Navio negreiro”,
de Castro Alves, de 1869, em que o poeta fazia a denúncia da viagem dos cativos
nos porões dos navios negreiros. Ora, isso nos atesta, mais uma vez, o
pioneirismo de Maria Firmina. Assim como sua ousadia e sua coragem de falar e
denunciar assunto tão delicado, visto que sabemos que o tráfico de escravos já
estava proibido no Brasil, desde 1850, com a Lei Eusébio de Queirós.
Passaremos agora ao
romance Úrsula. Como dito, o livro não se desprende de nenhum elemento
dramático, é aquela história que nos deixa aflitos com os porvires da
narrativa, até porquê, não se sabe muito bem o que vem de Úrsula ou do
narrador. O que temos que ressaltar e o que é, inclusive, o que grande parte
dos - ainda tímidos- artigos escritos na academia tem relatado é a questão da
profundidade dos personagens negros. Na obra Firminiana eles não são vistos
como meros escravos e nem mesmo como artífice da trama principal. Como bem
coloca a Revista Suplemento Pernambuco (06/19) "O romance transgrediu o
campo mapeado pela ficção brasileira, ultrapassando o limite das águas
navegáveis pela imaginação e pelo pensamento no século XIX. Na obra, é do homem
negro que brota a medida do humano, e da mulher negra que emerge um arquivo de
memória cuja narração fratura o ordenamento colonial que organiza(va) a
sociedade brasileira. Esse romance produziu uma significação (dentro e fora do
texto) que não apenas confrontava a realidade que a literatura oitocentista
produzia, mas que gerou também uma pergunta, e uma forma de perguntar,
rastreada em outros romances, que alçam contornos de uma comunidade entre
discurso e vida, entre narrativa e experiência histórica, a partir da qual
outra interpretação do Brasil emerge, fraturando a “comunidade imaginada”
alimentada em diversos romances que compõem o cânone literário nacional".
Sendo assim, É na
condição de mulher e afro-brasileira que Maria Firmina propõe-se a narrar a
história da jovem Úrsula e de sua mãe, além dos infortúnios de Tancredo, traído
pelo seu próprio pai, bem como a tragédia dos escravos Túlio, Susana e Antero,
os quais recebem, no texto, um tratamento marcado pelo ponto de vista interno,
pautado por uma profunda fidelidade à história oculta da diáspora africana no
Brasil.
Talvez seja isso o
que nós estudantes negros - e não negros também! - devemos fazer jogar na roda
essas poucas mulheres escritas e ocultadas ou embranquecidas pela sociedade,
para que mulheres negras não precisem mais pedir desculpas - como fez Firmina, leia em seguida- ao escrever um livro
e narrar uma história de seu povo.
"Mesquinho e
humilde livro é este que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o
indiferentismo glacial de uns e o riso mofador de outros, e ainda assim o dou a
lume. Não é vaidade de adquirir nome que me cega, nem o amor-próprio de autor.
Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher
brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens
ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem, com uma instrução
misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais, e pouco lida, o seu cabedal
intelectual é quase nulo.” (Maria Firmina dos Reis, Úrsula)
Com Maria Firmina
dos Reis e sua obra devidamente apresentadas, passemos então à problemática da
história única. Por que pouco - ou nada- se comenta sobre Maria Firmina dos
Reis no meio acadêmico? Por que eu, uma estudante de Letras estou a um pé de
sair da universidade e nunca se quer ouvi esse nome na minha vida? Por que ela
com toda sua maestria e irreverência não é nem mencionada na academia? E se
mencionada, isso é feito com tão pouco esmero que nem é lembrada. Enfim, é
notório que Romances com autoria negra na literatura brasileira constituem um
quadro de poucas obras, um quadro rarefeito. Segundo a Revista Suplemento
Pernambuco, na sua edição de junho/19 - inclusive foi através dela que conheci
a obra e a autora que aqui vos falo - de 1859 a 2006, apenas 11 romances
assinados por mulheres negras foram lançados no Brasil, e de 2006 até 2019, já
são 17, isso graças às rodas de leituras com a temática negra que vem crescendo
entre os leitores.
Por isso a ideia de tirar da torre e jogar na roda! Porque é isso
mesmo! É inaceitável em um país continental em que contém a maior população
negra fora da África que apagamentos como esses sejam feitos. Por qual motivo
não podemos ler no mesmo alinhamento José de Alencar e Maria Firmina dos Reis, que embora tenha
sido publicada em 1859 a obra (Úrsula) estava no prelo em 1857, o que indica
que o romance
pode ter sido
escrito antes ou concomitantemente a O guarani (1857), de José de Alencar.
Ambas as obras partilham do mesmo contexto histórico e político, mas, entre os
significados para o passado e o porvir que comunicam, existem largas
diferenças. E essas diferenças estão unicamente na história romanceada que
querem que vejamos, a história aos olhos do
branco e, principalmente, dos homens brancos.
"– Tu! Tu livre? ah,
não me iludas! – exclamou a velha africana abrindo uns grandes olhos. Meu
filho, tu és já livre?" (Maria Firmina dos Reis, Úrsula).
Que Maria Firmina
dos Reis não caia mais uma vez no esquecimento, porque se tem algo que sua obra
não é, é mesquinha, pois é possível perceber que Úrsula não é apenas o primeiro romance
abolicionista da literatura brasileira, fato que não é admitido por grande
parte dos historiadores de literatura, mas é também o primeiro romance da
literatura afrobrasileira, entendida esta como produção de autoria
afrodescendente, que tematiza o assunto do negro a partir de uma perspectiva
interna e comprometida politicamente em discutir a condição dos negros no
Brasil daquele século e também destes tempos de hoje, já que a sua obra não se
encerra numa perspectiva passadista, sem comunicações para o presente. O
romance Úrsula vem inaugurar, em nossas letras, o momento em que remanescentes
escravos tomam, com as suas mãos, o sonho de, através da literatura, construir
um país sem opressão. Que continuemos. E joguemos na roda.
Ainda venho comentar com vocês sobre "as outras obras" desse livro Úrsula e outras obras, e Maria Firmina dos Reis da Editora Câmara. Gostaria de ressaltar que esse livro está por R$0,00 golpinhos no Kindle! Aproveitem! Literatura de primeira com preço acessível!
Alyne Lima
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