Autor: Jeferson Tenório
Editora:
Companhia das Letras
Ano:
2024
Páginas: 208
“De onde eles vêm” é a mais recente obra de Jeferson Tenório, autor vencedor do prêmio Jabuti de 2021 pelo livro “O avesso da pele”; ambas as obras foram publicadas pela Editora Companhia das Letras, e ganham cada vez mais espaço no universo literário e acadêmico devido à sensibilidade elaborada e, com certeza, vivenciadas pelo próprio autor para abordar temas como o racismo e o fracasso de uma sociedade capitalista. Tenório, oriundo do Rio de Janeiro e radicado em Porto Alegre, é doutor em Teoria Literária pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e possui outras duas obras literárias publicadas “O Beijo na Parede” (2013), pela Editora Sulina e “Estrela sem Deus” (2018), pela editora Zouk.O enredo se passa no Sul do Brasil, mais
precisamente em Porto Alegre, e por meio de uma narrativa linear, mas com cenas
retrocessivas, Joaquim narra suas vivências negras na cidade que no ano de 2022
segundo dados da Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância (DPCI),
registrou aumento de 132% de denúncias contra o racismo em relação ao ano
anterior. Adicionalmente, é interessante – e lamentável – pontuar o racismo
sofrido pelo próprio autor, nesse ano de 2024, em uma abordagem policial no
Parque da Redenção, em Porto Alegre, sendo esse, por sinal, o tema de sua obra
premiada, anteriormente mencionada.
Já nas primeiras páginas do livro temos
uma lembrança do personagem Joaquim quando com dez anos, ele e sua mãe se veem
sem rumo, sem casa onde morar e buscando alternativas diante da pobreza que
persistia mesmo após as oito horas diárias de serviço. E é essa sensação amarga
de falta de possibilidades, que perpassa toda a narrativa, que causa incômodo,
como se a vida transcorresse de maneira dispersa e as personagens estivessem
ali como passageiros de um ônibus lotado de trabalhadores às cinco da manhã,
fazendo girar uma máquina que não possibilita a ascensão social de pessoas
negras e pobres: “Não era possível que a síntese da minha vida fosse um ônibus
lotado em meio a um calor insuportável de verão” p.8
No entanto, como uma quebra dessa visão,
no presente da narrativa, Joaquim lembra dessa cena com a mãe enquanto ele
apresenta pela primeira vez um poema autoral na universidade de Letras para seu
professor, Moacir Malta. E após ler o poema, dando o máximo de si: “Comecei a
ler, pausadamente, porque queria que todos compreendessem o significado de cada
palavra e seus encadeamentos” p.6, Joaquim recebe elogios dos colegas e do professor,
e esse acrescenta que o poema lido era “uma luta física pela permanência do
passado, como se este pudesse ser conservado nos desejos” p.6, e ainda, faz uma
comparação do título com um poema de Fernando Pessoa, mas o leitor não tem
acesso ao poema para também analisá-lo.
No próximo ponto, é revelado ao leitor que
Joaquim entrou na universidade aos 24 anos, pelo sistema de cotas, logo, a obra
possui como pano de fundo o ingresso dos primeiros cotistas nas universidades
brasileiras e é nesse cenário que ocorre o despertar racial de Joaquim, que
começa a perceber as profundas desigualdades e os abismos vivenciados por ele e
pelos seus colegas de classe que são majoritariamente brancos. Apesar disso, o
personagem mantém o desejo de ser um escritor reconhecido e espera que esse curso
o ajude a devolver a escrita, bem como, suas habilidades de interpretação,
porém, muitos percalços são encontrados: “tudo que posso dizer é que quase fui
vencido pela burocracia” p.7.
O autor, em entrevista, já mencionou que
não busca com o romance discutir o processo das cotas, e sim, como a trajetória
dos personagens negras se desencadeiam nesse ambiente após a Lei de Cotas
(12.711/2012), e como essa desorganizou um espaço de poder e oportunidades até
então dominado pelas elites. Por esse motivo, a medida em que os fatos se
desenrolam, os modos de intersecção de uma multiplicidade de temas podem ser
encontrados em alguma parte do livro. Cada palavra, cada movimento e gosto do
personagem, além de suas relações de amizade e amorosas nos contam sobre uma
determinada situação, de um tecido social tenso, frágil, mas imprescindível
para entendermos a complexidade das vivências ali dinamizadas.
De maneira mais ampla, é possível observar
o desencontro intelectual de Joaquim com as leituras que são impostas pela
universidade. Diversas obras e autores como Ulisses, Aristóteles, Odisseia, são
recomendadas, mas parecem não fazer muito sentido ou contribuir
significativamente para as reflexões de Joaquim na sua própria escrita. Desse
modo, é necessário ressaltar que quando uma universidade propõe uma grade
curricular eurocentrada ela propõe uma “prisão”, isto é, autores que estão
dentro não saem – comumente chamados de clássicos – e autores que estão fora
dificilmente entram, instaurando assim o que se nomeia como cânone: “Ulisses
era um personagem muito distante do que eu entendia como literatura naquele momento”
p.99
Elaborando esse conceito, trazemos a
abstração que Tomaz Tadeu da Silva faz no seu livro Documentos de identidade: uma introdução às teorias do
currículo, dizendo que “é através de um processo pedagógico que permita às
pessoas se tornarem conscientes do papel de controle e poder exercido pelas
instituições e pelas estruturas sociais que elas podem se tornar emancipadas ou
libertadas de seu poder e controle” (TADEU, 2016, p.54). Partindo dessa
premissa, o que podemos presenciar a partir de muitos dos currículos
universitários é essa tentativa e auferimento de controle à hegemonia branca,
nessa perspectiva, fica evidente a dificuldade que Joaquim enfrenta de se
identificar com as disciplinas e com as discussões que são feitas em sala de
aula, mas que ele – e outros colegas negros – opõem-se e buscam caminhos para
aos poucos reverter essa situação.
Outro ponto de análise, que apesar de não
ser um ponto alto do livro é um elemento crucial para a mudança de percepção de
Joaquim sobre si mesmo, são as religiões de matrizes africanas como
potencializadoras. Assim, ao presenciar de diversas maneiras a opressão, o
racismo, as desigualdades sociais, etc. o personagem entra em um limbo, como se
ele tivesse perdido o encantamento de si. No entanto, por meio da religião de
matriz africana ele reencontra o elo com os seus e revifica suas
potencialidades pela ancestralidade, e isso o impulsiona a caminhos antes
inimagináveis. É como se quanto mais você – negro – se aproximasse de coisas
que te distanciam do seu eu negro, mais você estivesse fadado ao
fracasso. Por esse motivo, se distanciar da universidade é uma alternativa para
Joaquim em determinado momento na narrativa, mas o retorno é possível após o
reencontrar-se.
Além desses pontos específicos, que
envolvem a universidade e o ser negro em si, a relação de Joaquim com a avó e a
tia desdobra-se por todo o livro. Avó, já bem de idade e com lapsos de memória,
em muitos momentos é vista como um fardo a ser carregado pelo personagem, que
cuida dela junto com a tia-avó que também já está em idade avançada, mas
continua se dedicando ao serviço de doméstica em casas alheias. Mas ao final da
narrativa é perceptível a mudança de visão de Joaquim sobre a avó: “Minha avó
era um boabá, cujas raízes brotavam em mim. A ancestralidade era um desejo
terno de envelhecer” p.185
A realidade é que “De onde eles vêm”, tece
uma narrativa que evoca a máxima de Conceição Evaristo “A nossa escrevivência
não é para adormecer os da casa grande e, sim, para acordá-los de
seus sonos injustos”, pois evidencia o paralelo da literatura como ideal
elitizado, isto é, que evoca a imagem de um leitor deitado no sofá apenas por
abstração; em contraste com a ideia da literatura como dissentimento, como
mencionado pelo próprio personagem “Quando você lê, viver de maneira harmônica
com o mundo é impossível. A impressão que estamos em constante desacordo com a
realidade” p.152. Nesse sentido, a literatura de autores negros não visa – em
sua maioria – ser aconchego ou passatempo, muito pelo contrário, tem a urgência
de retratar e colocar em pauta inconformidades da contemporaneidade.
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